domingo, 3 de novembro de 2013

VIVRE SA VIE de Jean-Luc Godard - 09.11.2013 - 21h30


Contemplação

(…) Tal como, em Une femme est une Femme, os meios para obter a desdramatização (as três pancadas como no teatro, a música como na ópera, os gags como nos comics) nos remetem para a verdadeira impossibilidade de a obter e estabelecem dissonâncias, também o "recuo" é, em Vivre sa vie, porque finalmente conquistado, a própria tonalidade do relato. A câmara já não é cúmplice, persegue, como em Rossellini, uma alma nas suas palpitações mais íntimas e, se Angela lhe piscava o olho, Nana baixa muitas vezes os seus olhos perante ela. Os meios para se criar o distanciamento já não são exteriores, parece que este existe por si próprio, se exceptuarmos a dramatização teatral (os doze quadros, a cena final) que, aliás, termina numa desdramatização cinematográfica, como se, indo buscar a técnica de uma outra arte, Godard aprofundasse a sua, por meio de uma metamorfose que é uma inversão.

Apropriação

Estou a falar ao acaso. Sabemos que tal nunca fez recuar Godard. Os seus filmes estão pejados de referências, citações, inclusões de elementos estranhos. Foi o mestre da integração, do seu sonho pessoal noutros sonhos paralelos que o alimentam, o fecundam, o prolongam. Absorve com toda a naturalidade as ideias ou as criações de outros e, de Pickpocket (O Carteirista) passa a Vampyr (Vampiro) pois já não se trata aqui de nenhum roubo mas sim de um alimento necessário. Há nele uma autêntica moral e estética da apropriação. É assim que, em Vivre sa vie, para não falar dos outros filmes onde isto é ainda mais flagrante, se misturam a sombra de Louise Brooks, um nome saído de Renoir, assim como, mais directamente, a cara de Falconnetti, modelada por Dreyer. (Tudo isto em homenagem ao cinema mudo). Mas também uma canção, um disco de dança, uma reflexão filosófica, um texto de Poe.(...)

Quanto ao texto de Poe, essa transparente história de vampiros engastada no mais belo filme de vampiros, é difícil não lhe atribuir um valor de confissão, a mais sincera das confissões de um artista e, aqueles que se sentem perturbados pela voz de Godard a ler esse texto, não percebem o quanto isso multiplica, emocionalmente, a cena, e a frase soberba: "É a nossa história, um pintor que faz o retrato da mulher."

Portanto, Godard apropria-se. Tal como numa tela de Braque uma caixa de tabaco deixa de o ser para se tornar um elemento do quadro, também, Godard, com o seu talento faz com que a cara, as lágrimas de Falconetti, se transformem na cara, nas lágrimas de Karina e, desse modo, num plano de Godard. Admirável paradoxo. Nunca nenhum artista foi mais original, mais irredutível em relação aos outros, "pilhando" tão abertamente. Vampiro, dizia eu, pois este filme mergulha directamente, e sem a mediação de uma aparência fantástica, na própria fonte do vampirismo, revelando assim as latências de um dos mitos poéticos mais ricos de toda a literatura e do cinema. É um filme sobre a absorção; a sombra absorve doze vezes a luz (os fundidos negros), a morte absorve a vida. Do mesmo modo, Godard absorve o mundo para, finalmente, ser ele próprio absorvido pela sua criação. (É o que exprime o Portrait ovale.)

Jean-André Fieschi
in Cahiers du Cinéma, nº136
Outubro de 1962
retomado in Um Rio - Duas Margens